O absurdo é a vida



       O espetáculo Los niños perdidos, que a Produccionies Micomicón (Madrid, Espanha) apresentou no Teatro Rondon Pacheco segunda-feira à noite ajuda a nos lembrar o quanto o imaginário político dos espanhóis se aproxima de seu análogo latino-americano. Não se trata apenas de uma questão temática – Los niños perdidos, com suas três crianças escondidas num sótão enquanto algo horrível pode estar ocorrendo lá fora, evoca o franquismo, como boa parte de nossa criação cênica trata do horror da vida sob ditaduras e das sequelas deixadas por elas. A afinidade entre nós e o espetáculo espanhol está, antes de tudo, na maneira como sua cena se organiza a partir da idéia de que a própria existência é fundada no absurdo.
       A palavra “absurdo” chegou ao teatro logo depois da Segunda Guerra Mundial, para designar um conjunto de peças que partiam de um olhar existencialista do mundo, operavam a partir do questionamento da própria linguagem como meio adequado à compreensão do mundo e apontavam as fraturas lógicas presentes em qualquer discurso não como inerentes ao discurso, mas às contradições presentes nas realidades que ele representaria. Conscientemente ou não, a dramaturgia de Los niños perdidos chega a uma série de situações que constituem fragmentos daquele teatro existencialista – inclusive textos que, embora nunca tenham sido chamados de “teatro do absurdo”, são aparentados com ele.
       Como os heróis do Esperando Godot, de Beckett, nossas personagens aguardam algo externo que nunca chega, mas pode transformar suas vidas. O que está lá fora é assustador, como no Amadeo ou Como se livrar dele, de Ionesco, e sua simples proximidade determina boa parte das ações em cena. Num momento poderemos ter uma evocação do Entre quatro paredes de Sartre, O balcão de Genet, O arquiteto e o Imperador da Assíria, de Arrabal. Como nestes textos, não temos como saber se o que é relatado corresponde a uma verdade; mas temos a certeza de que nos espera o horror, o tédio, o absurdo, não importa o que esteja lá fora. Temos uma consciência permanente de que o tempo passa, e que aquelas personagens tentam, em suas histórias, memórias, jogos que fingem ser a realidade, lidar com o desconforto de enfrentá-lo.
       O existencialismo caminhou rumo a uma dramaturgia que, se era política na base, recusava a referência política na superfície. Os latino-americanos e, pelo visto, os espanhóis, explicitaram aquela referência. Temos questões como o franquismo, a religião e a moral conservadora como parte do próprio enredo. E temos a ruína material, conseqüência daquelas opções sociais, que determina não apenas a cenografia, mas a própria maneira como nossos heróis se relacionam. As sequelas da violência não conseguem se situar apenas na palavra.


Marcello Castilho Avellar

Nenhum comentário:

Postar um comentário