Medusa

 
Numa conversa no domingo, alguém criticou o último espetáculo apresentado no Festival Ruínas Circulares, Medusa da companhia chilena La Trompeta, por insistir no tema da ditadura. Numa fala condescendente, mencionou que é compreensível uma obra como aquela, já que os chilenos ainda não teriam superado seus anos sob o autoritarismo. Lembrei-me de conversa semelhante, anos atrás, a respeito de espetáculo que o coreógrafo Luiz de Abreu montava em Salvador. A queixa, então, era que lá vinha Luiz de novo insistir no tema do racismo dos baianos. Ora, a Bahia, com sua importante população negra, continua escrevendo algumas das páginas mais terríveis do racismo no Brasil; e quem não superou os traumas da ditadura fomos nós – basta ver o desconforto que surge cada vez que se debate os limites da lei da anistia ou se fala na abertura de informações sigilosas. Na verdade, o desconforto com a encenação das duas questões estaria no espaço oposto: gostaríamos que não fossem debatidas porque nos incomodam, desagradam, lembram-nos de nossa incompetência na solução delas.
       Em Medusa, três mulheres vivem trancadas dentro de um apartamento. Desejam sair, mas sabem que se o fizerem sem proteção, serão mortas por causa do trabalho que realizam: entregar pessoas a um misterioso órgão de segurança. É metáfora das boas: não importa de que lado você esteja, a vida é terrível se do lado de fora existe alguém que acumula poder em excesso.
       De todos os espetáculos apresentados no Ruínas Circulares, Medusa pode ser considerado o mais convencional. Para sua apreensão, a compreensão do texto é tão importante quanto a de qualquer nuance no corpo ou na voz das personagens – mesmo operada precariamente, a apresentação de legendas foi decisão sábia. Essencialmente, tivemos diante de nós um gabinete com pretensões a síntese realista, personagens realistas se apresentando diante de nós numa relação completamente frontal, ações encadeadas em simulacros de causa-e-efeito. Tem força principalmente pela intensidade de seu trio de atrizes, a maneira como se jogam com bravura, fisicamente e emocionalmente, umas contra as outras, como conduzem suas personagens rumo a alianças e confrontos. A metáfora de Medusa não está apenas no texto, mas na maneira como o elenco define o espetáculo.

Marcello Castilho Avellar

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