Antigona



Volta e meia, brinco com meus alunos que a essência de qualquer história (a palavra vista aqui como enredo + ponto de vista) pode ser apresentada em forma de monólogo. Para que isso ocorra, são necessários apenas dois elementos: um dramaturgo de primeira; e um performer sublime. A dramaturgia de José Watanabe para a Antígona do Yuyachkani (Lima, Peru) é de primeira. A interpretação de Teresa Ralli, sublime. É isso que faz do espetáculo uma das criações mais belas apresentadas no Brasil este ano.
       Para aprendizes de teatro, aquele desafio é ótimo exercício. Para um intérprete profissional, é alcançar a essência do próprio teatro. É isso que encontramos em Antígona. Se Teresa Ralli consegue levar ao extremo a possibilidade radical de ser, ao mesmo tempo, narradora e personagens do espetáculo, é porque consegue levar ao extremo algo central ao próprio teatro: o estabelecimento de relações no espaço e no tempo. Em geral, reduzimos essa prática às relações com o outro performer e o público – e já está de bom tamanho, pois boa parte dos elencos acha que pode interpretar pensando em si mesmo.
       Teresa Ralli não tem a “muleta” do parceiro de cena. Em compensação, encontramos um corpo e uma voz com treinamento tal que temos a nítida impressão de que cada músculo e cada timbre dialogam com outro músculo e outro timbre, e esse diálogo é projetado para a plateia a cada momento. Não se trata apenas de diferenciar uma das figuras em cena de outra, mas de produzir diferenças dentro de uma mesma figura – uma sonoridade serena acompanhada de um gesto tenso, uma parte do corpo avançando com convicção enquanto outra ainda teme as consequências de determinada ação, por exemplo.
       O melhor é que Antígona não é mero exercício de estética. O Yuyachkani, em suas décadas de existência, surpreende sempre pela coerência ideológica num mundo onde convicções parecem transitórias. Antígona é mais um capítulo na afirmação poético-política do grupo: um chamado a valores éticos como a justiça e a liberdade, que não faria sentido – ou, pelo menos, não teria força – se não fosse acompanhado exatamente daquele jogo cênico. A impressão que se tem é que Teresa Ralli e seu diretor Miguel Rubio Zapata construíram seu espetáculo exatamente a partir dos princípios de que ele trata. Antígona não poderia existir apenas a partir da intuição dos artistas, é nitidamente uma construção sobre escolhas conscientes de signos e estruturas – exatamente a trajetória de sua heroína, cuja grandeza e tragédia é exatamente não aceitar passiva o que lhe é ditado. Por isso a síntese, a quase ausência de elementos em cena, e a diversidade de usos destes elementos: talvez seja a consciência do artista, e não seu talento ou intuição, que descubra o significado de cada coisa, da luz ao objeto, no palco ou no mundo.

       Marcello Castilho Avellar

Um comentário:

  1. Sou apaixonada por esse grupo, Tereza sempre perfeita. Vida longa ao grupo

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