Nossos mitos contemporâneos

      A apresentação de Antígona no Festival Ruínas Circulares nos lembra o quanto o sentido dos mitos se desloca ao longo da história. Na virada dos séculos 18 e 19, Hegel elogiou a tragédia de Sófocles por sua capacidade de ser dialética, de representar uma contradição entre a lei dos deuses, natural, e a lei da cidade civil, antagônicas mas inseparáveis. Hegel percebia, no texto, um equilíbrio perfeito e, por isso, trágico entre os dois valores. O engraçado da história é que possivelmente os gregos do século 5º a.C. e o próprio Sófocles não viam o mundo assim. Com seu quase desconhecimento da ideia de indivíduo e valorizando bastante a cidade, é provável que o público ateniense desse mais razão ao rei Creonte na sua obsessão em punir, mesmo depois de morto, o príncipe que atacara a cidade natal, que a Antígona, decidida a realizar os ritos fúnebres em homenagem ao irmão morto. Em compensação, no século 20, desde que Bertolt Brecht se apropriou da tragédia de Sófocles para construir sua Antígona ostensivamente política, tendemos a nos identificar mais com a heroína, percebendo-a como símbolo perfeito da luta da liberdade contra a opressão.
       O grupo peruano Yuyachkani nos lembra o quanto na América Latina precisamos deste olhar sobre Antígona. Boa parte de nós cresceu sob ditaduras, e não ditaduras assumidas, mas autoritarismos que se disfarçavam sob ordenamentos jurídicos burocráticos, que até mesmo mantinham parlamentos em funcionamento, como no Brasil – mas não eram menos autoritários por causa disso. Aprendemos a desconfiar da lei civil porque sabemos como pode ser manipulada pelo poder político ou econômico. Desejamos ardentemente uma “lei dos deuses” – da ética, da moral, do bem-estar coletivo, que nos proteja contra o arbítrio do poder. Por mais ideológica que seja a opção do Yuyachkani e de outros grupos que, no continente, se dedicam a reescrever o mito de Antígona, ela não vale pela ideologia, mas pela necessidade: precisamos que as ideias de Antígona, e não as de Creonte, sejam vitoriosas por aqui.
       O Festival Ruínas Circulares vem mostrando outras pequenas migrações de significado que falam bastante de nossas necessidades contemporâneas. São enunciados que, se lidos literalmente, constituem inverdades, mas quando contextualizados, revelam nossas carências. No debate que se seguiu à demonstração de processo do grupo espanhol Micomicón, na terça-feira, por exemplo, alguém na plateia, referindo-se à produção, disse que “aqui no Brasil a gente acha que em outros lugares o teatro é mais valorizado”. Valeria a pergunta “A gente quem, cara pálida?”, porque a pergunta induz alguém a pensar que todos os brasileiros acham isso, ou, pelo menos, que todos os agentes teatrais do país pensam assim. A resposta do intérprete do grupo chegou a “O teatro não pode ser arte de massa” – esquecendo da Broadway, dos teatros renascentistas e barrocos em diversos lugares (inclusive a Espanha), ou, já que o texto começou ali, dos teatros gregos e romanos onde cabiam milhares de pessoas – toda a população de cidadãos e homens livres das cidades a que serviam.
       Estariam nossos participantes do festival mentindo? Não. Apenas sabem onde estão. Sabem que quando se referem a “a gente” ou a “teatro”, não falam de todas as gentes ou de todo o teatro, mas de uma determinada representação de pessoas ou de teatro. A de teatro é fácil compreender – um teatro intencionalmente construído para expandir linguagens e não para se conformar com as existentes, e para promover transformações no mundo, e não para afirmar conservadoramente os valores do mundo. A partir dessa definição, entendemos “a gente”: o conjunto de tribos cênicas interessadas nesse teatro, concentrado, principalmente, em grupos, coletivos, escolas. Alguém pode acusar essas representações de serem redutoras. Mas, como em nossa paixão por Antígona e nosso repúdio a Creonte, é questão de sobrevivência: se alguns de nós não perceberem esse teatro militante como “o” teatro (e seus ativistas como “a gente”), não haveria qualquer diversidade nos palcos. E como a ideia de diversidade está no próprio centro da existência contemporânea, falar de palcos sem diversidade cedo ou tarde significaria falar em vida sem teatro


Marcello Castilho Avellar

Nenhum comentário:

Postar um comentário