A outra história



       Antes mesmo de qualquer significado artístico, um evento como o Ruínas Circulares tem importância política. Ao longo da maior parte de sua história, o Brasil e a América hispânica se viraram mutuamente as costas, como se fossem vizinhos brigados que não se falam, mesmo quando passam um pelo outro todos os dias. Nos últimos anos, tem havido aproximação maior entre os países do subcontinente, mas ela passa mais pela economia e a geopolítica que pela cultura – ou seja, é uma falsa relação em que um se comunica com o outro mas não se ocupa de conhecer o outro. Qualquer relação verdadeira, profunda, passará necessariamente por esse conhecimento, pelo contato com o imaginário do outro. Esse fato dá particular dimensão à apresentação, no festival, de Fragmentos de libertad – 200 años, pelo Avante Teatro, de Bogotá (Colômbia).
       De novo, podemos pensar em Fragmentos de libertad como algo que faz sentido antes mesmo de ser obra de arte. Trata-se de uma daquelas criações que têm, como objeto, a crítica à história oficial. Na Colômbia – como em todos os outros países latino-americanos – a história, ao ser escrita pelas classes dominantes, adquiriu também um conteúdo de afirmação da raça e da religião. É, na essência, uma história dos brancos, dos ricos, dos católicos. Ao conflito de classes juntaram-se pelo menos dois outros, e o discurso histórico, que deveria servir para ajudar as pessoas a compreender suas identidades coletivas, tornou-se ferramenta para ocultá-las e, através destes ocultamentos, reproduzir as estruturas de discriminação. Quem acompanha, no Brasil, a luta dos movimentos negros pelo reconhecimento tanto de direitos quanto de sua importância na construção do país, e a reação, da violência física ao sarcasmo, contra eles, só precisa substituir “negros” por “índios” para compreender um dos principais pontos de tensão na Colômbia contemporânea. Fragmentos de libertad pretende usar a mesma arma do sarcasmo na luta pela construção daquela nova identidade nacional, expondo as contradições daquela narratica pseudo-histórica branca, católica e burguesa.
       No que se refere à arte, Fragmentos de libertad representa agradável surpresa para os que apreciam certo segmento da cena brasileira cujo expoente máximo é o Teatro Oficina, de São Paulo. Sua lógica é a da carnavalização. O espetáculo opera como um sistema de poesia, canto, dança e interpretação, em que nenhum dos elementos se encontra isolado dos outros. A informação contida no sistema aparenta-se ao que é produzido a partir da ideia de antropofagia que marca a arte brasileira desde os modernistas: são fragmentos que, se pensados isoladamente, podem vir de milhares de fontes, mas editados da maneira como estão, parecem definir uma cultura específica – aqueles cortes não poderiam ser feitas por brasileiros, por exemplo.
       O conjunto é divertido, mas deixa sabor amargo na boca: quando nos pegamos rindo da tragédia alheia, ou agindo simbolicamente para agredir a cultura alheia, somos confrontados à agressão e ao descaso de que nós próprios somos vítimas. Neste sentido, Fragmentos de libertad traz consigo a melhor política para a cidadania: expor o absurdo da opressão e da discriminação. E, de quebra, nos lembra quão absurdo – e ridículo – é aquele virar as costas ao outro que marcou a trajetória latino-americana: o espetáculo nos lembra que nossas semelhanças são bem mais fortes que as diferenças. Do modo de contar a história oficial ao modo de demoli-la.

Marcello Castilho Avellar

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