O velho e o novo



Há um paradoxo gostoso na Parada de rua do grupo Lume, de Campinas (SP). Entra ano, sai ano, e ela é a mesma coisa; e, ao mesmo tempo, a gente nunca vê a mesma coisa duas vezes. O fato de ser a mesma coisa produz uma espécie de sentimento de aconchego: tendemos a gostar do que já conhecemos, gostamos de reconhecer, de saber que há algo permanente num mundo tão instável como o nosso. O fato de ser uma coisa diferente a cada vez que assistimos dá prazer por outro motivo: excita, produz curiosidade, deixa-nos em estado constante de alerta – é bom saber que não estamos condenados à rotina e ao tédio, que o novo existe, que sempre haverá algo que ainda não vimos.

A permanência está no próprio centro do trabalho do Lume. A paixão da trupe pelo clown pressupõe a idéia de que é possível mergulhar a vida inteira num único tipo, em busca de seu aprimoramento – como se estivéssemos à procura de uma forma de perfeição que talvez seja impossível. Essa idéia, em si mesma, contém uma subversão frente aos valores dos dias de hoje. Quando perguntamos a atores ou aprendizes de teatro o que consideram um bom performer, a maioria responde que é o intérprete capaz de desenvolver um papel diferente a cada dia, todos distintos do que o próprio artista é. É resposta típica do nosso tempo burguês, industrial e consumista – importa a quantidade de papéis antes de sua qualidade, importa o consumo voraz de personagens pelos elencos e seu público, importa a adequação do artista às mudanças da moda, importa sua alienação, no sentido da separação entre ele e o fruto do seu trabalho.

O clown nos remete a um tempo pré-industrial, quando era possível levar as coisas até o fim, quando era possível artista e papel serem próximos, quando o tempo era um aliado, e não um rival com quem estamos em competição. Quando assistimos a criações como as dos intérpretes do Lume, encontramos arquétipos, representações de coletividades inteiras e de sua fantasia, radicais em suas qualidades e defeitos, e não personagens que fingem ser indivíduos, com seus dramas individuais e, portanto, necessariamente limitados.

Mas os corpos envelhecem. As mentes amadurecem. E exatamente aí começa a transformação. Enquanto a personagem é uma espécie de cristalização no tempo (o “acontece agora, acontece sempre” do dramaturgo Luigi Pirandello), o tipo segue em frente junto com seu performer. A moçada do Lume envelheceu. Seus corpos mudaram. E os corpos de suas criações mudaram junto com eles. Uma mudança orgânica, já que intérprete e tipo são inseparáveis. Lá estão novas formas de realizar velhas ações, algumas impostas pelas novas condições dos corpos, outras pela descoberta de novas possibilidades – impossível separar as duas categorias, já que a poesia e a graça com que se apresentam a nós permanecem as mesmas. Lá estão novas gags, porque a passagem do tempo leva artistas/tipos a buscarem dizer novas coisas. Lá estão novas maneiras de relacionar com o publico, porque o mundo mudou, os performers mudaram, e o treinamento permanente torna possíveis coisas que antes sequer eram imagináveis. O Lume tem algo de mestres como Mozart ou Shakespeare: a capacidade de nos pegar de surpresa mesmo quando preenche uma forma que pensávamos conhecer.

Marcello Castilho Avellar

2 comentários:

  1. É verdade Marcello, o Lume tem algo de Mozart e muito de Shakespeare: seu "mundo é um palco".
    www.omundoeumpalco.zip.net

    ResponderExcluir
  2. Foi com grande emoção que todos os atores e a equipe do LUME Teatro recebeu sua crítica, Marcello. Nossos parabéns ao olhar atento e ao texto sensível sobre o trabalho do núcleo.

    Atenciosamente,

    Carlota Cafiero
    Assessora de comunicação do LUME Teatro

    ResponderExcluir